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quinta-feira, 19 de abril de 2018

Barcelona / Blanes (1)


Antes do futebol, existe um mundo. Talvez 'o' mundo - mas me refiro aqui às experiências culturais que embalam nossas vidas, com as quais vamos aprendendo e encontrando lugares culturais e maneiras de viver. Deste ponto de vista, podemos dizer que existem vários mundos: subjetivos, culturais, sociais.

[A equipe brasileira Infantil, junto ao treinador Álvaro]

Conviver intensamente com crianças e adultos, submetidos inequivocamente ao registro da fantasia própria do mundo do futebol (pais se tornam torcedores, às vezes repórteres; professores se tornam treinadores, massagistas, preparadores; crianças e adolescentes brincam de serem jogadores), aguça em mim a dimensão cultural que o esporte pode alcançar.


Tentar falar, aprender e escutar outra língua, embora importante, é apenas uma das janelas da comunicação. Comunicar é o que importa. Tenho a sorte de conseguir fazer isso em espanhol e inglês de maneira razoável, o suficiente para traduzir treinos para espanhóis, americanos, australianos, brasileiros. Mas a maneira como os jogadores se comunicam, para além da questão do idioma, é o suporte para todo o desenrolar das atividades.


Forçoso lembrar que quem não se comunica se trumbica, com aquele alô do velho guerreiro.

Pedir uma comida, uma informação, reclamar, agradecer - com os olhos, braços, gestos, sentimentos à flor da pele. Muitos meninos viajam com sonhos reais de um lugar ao sol e uma chance no país que tem dominado o cenário mundial. Na quadra, então, quando jogam em times misturados entre países, perdoem o clichê necessário - mas o idioma que vale é o da bola. Todo mundo sabe quando vacila ou quando manda bem.


É realmente interessante perceber que, para além das diferenças culturais e da competição, há algo na infância e na adolescência que os aproxima. Que faz com que, mesmo em meio a celulares, fones e games no hotel e nos ônibus, os façam ficar juntos. Em meio a pequenos dramas (machucados, broncas, bolsas de gelo, frustrações, contusões), cantam músicas, pregam peças com o idioma, inventam jogos com as mãos (desses que as fazem arder!), riem uns dos outros o tempo todo!

Que seria isso?

[Os treinadores espanhóis, Pep e Cani]

Creio que se trata da curiosidade infanto-juvenil em descobrir o mundo. Para que consigam manejá-lo melhor dentro de si mesmos, e não se enganem: fazemos isso até o fim de nossas vidas. Quem desiste desta tarefa, infindável, normalmente perde o brilho nos olhos. Por mais que as experiências vão se acumulando, existe sempre algo a ser descoberto.

Aqui na pacata Blanes, cerca de hora e meia de Barcelona, para além do futsal, o que tenho visto de mais importante - e de mais belo - é a genuína vontade(pois que uma necessidade humana fundamental) de inventar a vida e fazer amigos.

[Com Xavi Closas e Oscar Alonso, profissionais do Barcelona]

Se esta experiência não for possível, o futebol também perde o sentido. O futebol é um mundo dentro de outros mundos.

Falemos dele na próxima postagem, ao final das competições que estão programadas para domingo.

[No Camp Nou com Eduardo, João e Pedro]

Um saludo desde España!


quinta-feira, 5 de abril de 2018

Cultura da violência

As trágicas estatísticas não deixam dúvidas quanto ao fato de que somos, mais que uma cidade, um país violento. A percepção da violência, neste momento de crise da segurança pública, termina, evidentemente, por chegar - além dos fatos em si - ao imaginário cotidiano de crianças e adolescentes.



Durante as aulas, podemos perceber as conversas, as estratégias para se locomover na cidade, o assombro com o noticiário, o medo dos familiares. Muitas cidades brasileiras, pequenas e grandes, têm proporcionado um ambiente terrível impossibilitando que meninos e meninas consigam viver com tranquilidade e aventurar-se em descobertas - percorrer ruas e praças, brincar, usufruir de liberdade.

O assombro da violência precisa ser combatido, além do poder público, pelos locais aonde as crianças (ainda) podem conviver, socializar, aprender e se formar como cidadãos. Estou falando das possibilidades para se combater, mais do que as guerras urbanas em si, a cultura da violência a qual estamos submetidos.

O futebol, notadamente, é um destes espaços.

Ocorre que, como um ambiente permeável ao mundo social mais amplo, o futebol também tem repercutido uma maneira rude, agressiva e mesmo violenta de viver e se relacionar. O modelo oferecido tem sido, demasiadamente no Brasil, a cultura de ganhar na marra, dos 'guerreiros'. Isso é visto desde as categorias de base até os times profissionais, que deveriam dar exemplo bem melhor.

Pessoas em formação necessitam de exemplos melhores com os quais possam identificar-se e se sentirem valorizados. Evidente que a disposição e a valentia fazem parte e são necessárias, não só no futebol mas na vida - mas como sinônimo de coragem para jogar, para viver. Não para reforçar a noção errônea e moralmente injustificável de que, mais do que vencer, é preciso destruir o oponente. Jogador joga bola.

Pais e mães, familiares em geral, ficam em situação muito difícil para dar conta das premissas educacionais para seus rebentos, se outras instituições não fizerem sua parte - e aqui desejo chamar a atenção para os clubes de futebol no Brasil. 

É preciso, mais do que nunca neste momento, assumir compromisso inequívoco com outro modelo: o do futebol como prazer, convivência, solidariedade, beleza, com a clara adoção de parâmetros morais sem os quais a disputa e a vitória não têm valor educativo algum. 

A imensa maioria de crianças e adolescentes que jogam futebol, no Rio, no Brasil e no mundo, não serão atletas. É para elas que devemos nos dirigir ao fundamentar nossas práticas pedagógico-esportivas. Fará bem também aos futuros atletas, podem apostar. Ninguém nasce profissional.

O futebol tem enormes possibilidades para ser um pólo irradiador de uma cultura de paz, porque toca o coração das pessoas. Não podemos nos dar ao luxo de abrir mão disso.

Depende mais das práticas adotadas do que de palavras vazias e faixas estendidas no centro do gramado.  

Aquele abraço, saudações esportivas

quinta-feira, 22 de março de 2018

A infância e o mundo virtual (2)

"Danço eu, dança você, na dança da solidão" (Paulinho da Viola)

Estávamos em período de férias escolares, mas mantendo aulas no Chutebol em horário especial, como é de costume. A turma vinha chegando aos poucos no final da tarde, um papai aflito se aproximou. Quase fazendo uma confissão, demonstra certa angústia ao mesmo tempo em que me agradece: "A única coisa que tira o fulano do game, nas férias, é esse futebol" - e se retira, entre esperançoso e aliviado.


[Foto de Leo Aversa]

Pude seguir recebendo e brincando com a molecada, ali pelos seus onze, doze anos. Quando paramos para beber água e passar à próxima atividade, achei por bem conversar com eles acerca do tema, tão atual, que aquele papai aflito evocou. Tentei perguntar algumas coisas, aos poucos e tomando o cuidado para não induzir as respostas (crianças e adolescentes, muitas vezes, dão a resposta que elas acreditam que os adultos desejam ouvir).


As questões eram simples, como "quem gosta de celular e videogame?"; "o que prefere fazer, jogar futebol ou videogame com amigos?"; e "existem outras atividades, além do futebol, que fariam você sair do game/celular e participar?". As respostas médias foram, como podemos supor, que eles gostam muito da parafernália eletrônica, mas não a ponto de deixar de lado o futebol ou outra atividade realmente interessante - que faça sentido, pensei.

Crianças e adolescentes, não custa lembrar, também precisam que as atividades nas quais se engajam façam sentido.

'Fazer sentido' inclui prazer, mas não só. Sentir-se autor (apropriar-se afetivamente) de uma tarefa, atividade ou projeto é, precisamente, aquilo que crava no sujeito o sentimento de potência, de criar alguma coisa. A descoberta do mundo real, na infância e adolescência, faz tanto mais sentido quanto o sujeito puder, para além de cumprir seus necessários papéis sociais e familiares, sentir-se criativo.

A criatividade da qual estou falando não é a dos grande gênios das artes, da literatura ou dos esportes. Mas da vida cotidiana. É a possibilidade de realizar projetos genuinamente pessoais e, não se enganem, a infância também precisa deles. Por menores que pareçam aos olhos dos adultos.

O mundo virtual também pode, evidentemente, comportar elementos ligados à criatividade. Tais projetos, no entanto, têm uma limitação estrutural: estão naturalmente atados às construções imaginárias e cognitivas, não agindo em favor do amadurecimento psicomotor. Ou moral. Social, quiçá, mas bastante discutível, frágil. Os melhores jogos, apps, redes sociais e que tais são simulacros quase perfeitos da realidade, mas ainda são isso: simulacros. Uma rosa é uma rosa é uma rosa, como naquele poema.

Hiperdimensionar o mundo virtual - e estamos fazendo isso sem perceber - significa viver imerso nestes simulacros. Crianças e adolescentes que não encontram motivos (sentido) para se aventurarem o suficiente na vida real estão dizendo para os adultos à sua volta: "nada me apaixona". Transferem  sua carga emocional e potencial criativo para o mundo virtual. Enxergam ali o único lugar seguro para, efetivamente, se lançarem e serem autores de uma história - na onipotência do imaginário. Aí é que o calo aperta.

A fantasia de controlar alguma coisa nesse mundão de deus (ou sem ele) é própria da espécie. Precisamos ordenar alguma coisa. Justamente para que nossas vidas ganhem sentido, cor, motivos enfim para vivermos com gosto. Esta é uma das razões, aliás, para a disposição natural das crianças em brincar. Na brincadeira elas podem exercer seu controle onipotente de imaginar, mandar, fazer de conta - mas no mundo real! É no diálogo do imaginário infantil, com as possibilidades que a vida real oferece, que o sujeito experimenta e testa os limites da realidade, à qual, afinal, termina por submeter-se. "Brincar é fazer", dizia um antigo psicanalista inglês. 

Ora, se a hiper-realidade virtual oferece, ao sujeito, a promessa de ser autor de uma história sem confrontação com a realidade e seus limites (debilidades do corpo, desconfortos morais, lutar para se enturmar), então a vida real não consegue competir. 

Não se o sujeito sentir-se sozinho para enfrentar tudo isso. Sozinho, não dá.

Não é à toa que o futebol, como bem sabe o papai do início da história, tem um apelo enorme para mostrar a essa meninada a vida como ela é. Não é à toa que eles respondem como, aposto, respondem a qualquer atividade que envolva momentos gostosos e aonde se sintam queridos. Nos casos muito difíceis, pode ser que a pessoa em questão já esteja muito desesperançada com suas possibilidades na vida real, e aí o trabalho é dobrado.

Se o que escrevi faz algum sentido, essa molecada está precisando de um olhar mais atencioso de nós, adultos. A fuga desenfreada para o mundo virtual pode ser sintoma de profundo desencanto e solidão.

De todo modo, sensibilizá-los para encarar as gangorras da vida só será possível se nós mesmos estivermos nelas. Eles não são bobos de brincar de gangorra sozinhos. 

Todo mundo sabe que não tem a menor graça.

Aquele abraço, saudações esportivas

quinta-feira, 8 de março de 2018

A infância e o mundo virtual (1)

Percebi em mim como um tique nervoso: toda vez que encerrava uma ação, colocava a mão no bolso em busca do celular. Digo, para qualquer segundo vazio passou a existir um gesto automático, à minha revelia - procurar o celular para... para quê, mesmo?

Essa foi a pergunta que precisei fazer diante deste novo ato reflexo, que passou a me incomodar profundamente. O vício de olhar para a tela, não à procura de algo que eu realmente precisasse, mas, assim como entendi: à procura de ser chamado por alguém.



Em tempos corridos, já não posso dizer que é um debate exatamente novo, mas percebo como um conflito dentro de muitos de nós. Pego no celular? Não pego? Preciso desta informação / app / resposta, AGORA?

Evidente que a resposta, para a imensa maioria das vezes nas quais consigo parar para pensar antes do tique nervoso, é um firme e sereno "não". Pois bem, precisei buscar mecanismos para usar melhor o telefone(?!) celular, no lugar de ser usado por ele. Tenho exprimentado ideias e dicas como: descartar notificações de todas as redes sociais; carregar um livro agradável sempre a tiracolo (para os instantes vazios); voltar a utilizar um relógio como despertador (para não acordar lendo mensagens); desligar o celular ao dormir; fazer refeições com ele desligado ou em modo avião, etc. A ideia é acessar, no lugar de ser acessado.

Superadas as primeiras horas e dias de angústia em saber se estavam precisando muito de mim a cada instante, se eu estaria perdendo um evento ultra maravilhoso, ou se alguma tragédia iria acontecer sem que eu fosse imediatamente informado (e compartilhasse isso com o mundo), comecei a sentir um alívio. Uma diminuição da tensão diária.

Para minha surpresa, eu continuava sabendo das coisas que queria ou necessitava saber; creio não ter perdido até o momento nenhum evento maravilhoso (que eu realmente quisesse estar); e as tragédias - especialmente as cariocas -, bem, as tragédias nos chegam  com ou sem celular. E as pessoas, nos campos pessoal e profissional, continuam, até onde eu sei, conseguindo falar comigo as coisas realmente importantes. Ou sutilmente cotidianas. Passaram até a me telefonar novamente.  =)

O desejo de desfrutar desta sensação de alívio das informações ganhou espaço e passou a reivindicar mais de mim. Para ações triviais, como ir à padaria ou ao supermercado num final de semana, tenho ido sem celular. Para ir à praia, ao bar assitir futebol e praticar esportes, idem. Ou ao cinema. Enfim, atividades que tenham um tempo razoavelmente previsível e nas quais já se esteja com quem se quer estar (ou a sós, por que não?). Voltei a dar aulas de futebol com o celular no lugar certo: a mochila no vestiário, salvo necessidades realmente urgentes para papais e mamães em aflição.

Tenho tentado educar a mim e a meu aparelho, que agora parece mais tranquilo e menos um bicho raivoso e tirânico a me solicitar a cada instante. É uma espécie de combate infindável, no qual, naturalmente, cada um vai ter que se haver com isso à sua maneira se, como eu, se sentir afogado num mar de lixo virtual. Não se trata de negar os benefícios virtuais ou ser refratário à tecnologia. Sinto como um ajuste necessário.

Creio que precisei relatar esta experiência por ter percebido, de modo ainda mais intenso, a relação infanto-juvenil com a tecnologia - ao tentar reeducar minha própria experiência virtual. Quando o tique nervoso dá um descanso, a percepção de pessoas à sua volta que estão completamente imersas na telinha, aumenta. 

E fiquei me perguntando, além da natural mudança de constumes com o passar das épocas, o que levaria tantas crianças a, como temos visto, se consumirem tanto em celulares e games.

Me ocorreu, além da identificação óbvia com o modelo que tem sido oferecido (adultos full time no celular), que crianças e adolescentes precisam, para dar sentido às suas vidas, de aventuras. Imaginar, viver, descobrir o mundo. Se muitos deles estão correndo tanto para o mundo virtual em busca destas descobertas, é sinal de que não estamos oferecendo possibilidades suficientes no mundo real - mas apenas simulacros. Esta é uma hipótese que pretendo sustentar.

Sobre este tema específico, vou escrever na próxima postagem.

O link abaixo, uma entrevista da 'ciber-antropóloga' norte-americana Amber Case, que tem estudado estas questões, me ajudou nestas reflexões:


Aquele abraço, saudações esportivas