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quinta-feira, 22 de março de 2018

A infância e o mundo virtual (2)

"Danço eu, dança você, na dança da solidão" (Paulinho da Viola)

Estávamos em período de férias escolares, mas mantendo aulas no Chutebol em horário especial, como é de costume. A turma vinha chegando aos poucos no final da tarde, um papai aflito se aproximou. Quase fazendo uma confissão, demonstra certa angústia ao mesmo tempo em que me agradece: "A única coisa que tira o fulano do game, nas férias, é esse futebol" - e se retira, entre esperançoso e aliviado.


[Foto de Leo Aversa]

Pude seguir recebendo e brincando com a molecada, ali pelos seus onze, doze anos. Quando paramos para beber água e passar à próxima atividade, achei por bem conversar com eles acerca do tema, tão atual, que aquele papai aflito evocou. Tentei perguntar algumas coisas, aos poucos e tomando o cuidado para não induzir as respostas (crianças e adolescentes, muitas vezes, dão a resposta que elas acreditam que os adultos desejam ouvir).


As questões eram simples, como "quem gosta de celular e videogame?"; "o que prefere fazer, jogar futebol ou videogame com amigos?"; e "existem outras atividades, além do futebol, que fariam você sair do game/celular e participar?". As respostas médias foram, como podemos supor, que eles gostam muito da parafernália eletrônica, mas não a ponto de deixar de lado o futebol ou outra atividade realmente interessante - que faça sentido, pensei.

Crianças e adolescentes, não custa lembrar, também precisam que as atividades nas quais se engajam façam sentido.

'Fazer sentido' inclui prazer, mas não só. Sentir-se autor (apropriar-se afetivamente) de uma tarefa, atividade ou projeto é, precisamente, aquilo que crava no sujeito o sentimento de potência, de criar alguma coisa. A descoberta do mundo real, na infância e adolescência, faz tanto mais sentido quanto o sujeito puder, para além de cumprir seus necessários papéis sociais e familiares, sentir-se criativo.

A criatividade da qual estou falando não é a dos grande gênios das artes, da literatura ou dos esportes. Mas da vida cotidiana. É a possibilidade de realizar projetos genuinamente pessoais e, não se enganem, a infância também precisa deles. Por menores que pareçam aos olhos dos adultos.

O mundo virtual também pode, evidentemente, comportar elementos ligados à criatividade. Tais projetos, no entanto, têm uma limitação estrutural: estão naturalmente atados às construções imaginárias e cognitivas, não agindo em favor do amadurecimento psicomotor. Ou moral. Social, quiçá, mas bastante discutível, frágil. Os melhores jogos, apps, redes sociais e que tais são simulacros quase perfeitos da realidade, mas ainda são isso: simulacros. Uma rosa é uma rosa é uma rosa, como naquele poema.

Hiperdimensionar o mundo virtual - e estamos fazendo isso sem perceber - significa viver imerso nestes simulacros. Crianças e adolescentes que não encontram motivos (sentido) para se aventurarem o suficiente na vida real estão dizendo para os adultos à sua volta: "nada me apaixona". Transferem  sua carga emocional e potencial criativo para o mundo virtual. Enxergam ali o único lugar seguro para, efetivamente, se lançarem e serem autores de uma história - na onipotência do imaginário. Aí é que o calo aperta.

A fantasia de controlar alguma coisa nesse mundão de deus (ou sem ele) é própria da espécie. Precisamos ordenar alguma coisa. Justamente para que nossas vidas ganhem sentido, cor, motivos enfim para vivermos com gosto. Esta é uma das razões, aliás, para a disposição natural das crianças em brincar. Na brincadeira elas podem exercer seu controle onipotente de imaginar, mandar, fazer de conta - mas no mundo real! É no diálogo do imaginário infantil, com as possibilidades que a vida real oferece, que o sujeito experimenta e testa os limites da realidade, à qual, afinal, termina por submeter-se. "Brincar é fazer", dizia um antigo psicanalista inglês. 

Ora, se a hiper-realidade virtual oferece, ao sujeito, a promessa de ser autor de uma história sem confrontação com a realidade e seus limites (debilidades do corpo, desconfortos morais, lutar para se enturmar), então a vida real não consegue competir. 

Não se o sujeito sentir-se sozinho para enfrentar tudo isso. Sozinho, não dá.

Não é à toa que o futebol, como bem sabe o papai do início da história, tem um apelo enorme para mostrar a essa meninada a vida como ela é. Não é à toa que eles respondem como, aposto, respondem a qualquer atividade que envolva momentos gostosos e aonde se sintam queridos. Nos casos muito difíceis, pode ser que a pessoa em questão já esteja muito desesperançada com suas possibilidades na vida real, e aí o trabalho é dobrado.

Se o que escrevi faz algum sentido, essa molecada está precisando de um olhar mais atencioso de nós, adultos. A fuga desenfreada para o mundo virtual pode ser sintoma de profundo desencanto e solidão.

De todo modo, sensibilizá-los para encarar as gangorras da vida só será possível se nós mesmos estivermos nelas. Eles não são bobos de brincar de gangorra sozinhos. 

Todo mundo sabe que não tem a menor graça.

Aquele abraço, saudações esportivas

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